Ressurreição de Lázaro

Giotto de Bondone

TEXTOS BÍBLICOSEzequiel 37:1-3 e 11-14; Salmo 130; Romanos 6:16-23; João 11:18-44

“Das profundezas a ti clamo, ó SENHOR. Esse é a oração do salmista que expressa um sentimento de sua pequenez e de fragilidade. Mas em relação ao que ele se senti assim? Quem sabe diante da morte, do inevitável… Representa algo vindo do profundo do ser, De Profundis… . Nesse momento de quarentena imposta pelo COVID-19, nunca visto na história da humanidade, esse talvez seja o sentimento que está também dentro de nós: pequinez e fragilidade.

Estamos diante de uma ameça de um inimigo, de um vírus capaz de nos adoecer, adoecer pessoas queridas, de nos deixar sequelados, ou até de nos levar a morte. A teóloga alemã que cunhou o termo “cristofascismo”,  “Dorothee Sölle (1996) lembra que as sociedades contemporâneas perderam a capacidade de suportar o sofrimento e de enriquecer-se, através dele, em termos de humanização, humildade e sabedoria” (ROSA, Ronaldo Sathler- Cuidado Pastoral pg.120). Só as pessoas loucas, que se acham tão seguras, tão intocaveis, são incapazes de compreender uma oração cheia de humanidade, humildade e sabeboria do Salmo 130. Elas talvez se achem tão imortáis e por isso abusam do seu poder. 

Não somos feitos para amar coisas imortais. Só o que é insubstituível, único, e mortal pode tocar nossa mais profunda sensibilidade humana e ser uma fonte de esperança e consolação. Deus só se tornou possível de ser amado quando se tornou mortal. Tornou-se nosso Salvador porque a sua mortalidade não foi fatal, mas sim, o caminho da esperança.

Temos visto muitos partirem de nosso meio. Muitos se vão: grandes líderes, amigos queridos e muitos outros desconhecidos, fazendo ou não parte de nossa vida. A vida é uma série continua de separações e perdas, maiores e menores. 

O pesar está presente em todas as mudanças, perdas e transições importantes na vida, não só por ocasião da morte de uma pessoa amada. Enfrentar a perda pessoal é parte indispensável do crescimento humano. Lembremos do texto de Ezequiel sobre a visão profética do vale de ossos secos. A imagem representa um povo fragmentado, por lutas e por disputas, fragmentado pela arrogância de inimigos externos, um povo que não tem mais rostos  de gente viva, mas restos de humanidade, ossos, ossos pilhados, esquecidos da memória. Morte de um povo que comprometeria o tesouro da memória, dos antigos feitos, do testemunho de fé de homens e mulheres. 

As perdas são oportunidades em potencial de crescimento pessoal e espiritual. A freqüência de perdas aumenta à medida que passam os anos. Por esta razão, aprender a lidar com perdas sem ficar gravemente mutilado por elas é uma habilidade fundamental para o envelhecimento humano criativo’ (CLINEBELL, Howard J. (1998). Aconselhamento Pastoral: Modelo Centrado em Libertação e Crescimento).  Talvez precisemos começar a ver, através do adeus de Cristo, que mesmo os nossos dias, podem ser dias de esperanças, abrindo caminho para o Espírito Santo vir, abrindo as portas fechadas de nossos medos e conduzindo-nos à plena liberdade e verdade.

A Ressurreição de Lázaro é o último grande sinal de Jesus no evangelho de João. Nesse sentido, já prefigura a própria ressurreição de Cristo. A enfermidade de Lázaro resume e personifica todos os enfermos apresentados até agora nos evangelhos, porque toda enfermidade conduz, em última instância, à falência múltipla dos órgãos, à morte. As enfermidades representam a ameaça real e concreta da morte física, da qual os seguidores de Jesus não estão isentos.

  A demora de Jesus em ir a Betânia pode ter sido deliberada. Talvez ele espere que o fato da morte se consuma. Jesus não vai interferir agora para alterar o ciclo normal da vida física, livrando o homem da morte biológica, mas dando a essa um novo sentido, para que ela deixe de ser motivo de temor. 

 “Eu sou a ressurreição e a vida. Todo aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá”. Com tais palavras, Jesus não promete que o ciclo biológico vida-morte se interrompa, mas mostra que a morte física não é capaz de interromper a qualidade de vida (a vida eterna) outorgada por Jesus aos que nele crêem. Por isso, “todo o que vive e crê em mim, não morrerá nunca”. Para quem recebe o Espírito de Deus, nunca existirá interrupção da vida. A morte é apenas uma necessidade física. Por isso, dentre os muitos símbolos da Páscoa temos o grão que precisa morrer para tornar-se espiga. 

No âmbito da morte, Jesus se apresenta como a ressurreição e a vida. Ele, que venceu a morte, manifesta aqui seu poder a despeito da incredulidade das pessoas. Quando Jesus pede que seja removida a pedra da sepultura, a primeira reação de Marta é dizer o mais óbvio: que após quatro dias, o corpo desfalecido já estaria cheirando mal! A resposta de Jesus serve para todos nós em nossa incredulidade: “se creres, verás a glória de Deus”. É pela sua palavra que os mortos retornam à vida. Jesus atualiza aqui a mesma ação de Deus no episódio do Vale de Ossos Secos

 A crença judaica projetava a ressurreição para o “último dia” (11.24), o dia escatológico de Javé. Jesus, com esse sinal, mostra que ele mesmo já estava inaugurando os tempos escatológicos. Além disso, Jesus ordena que os envolvidos removam os panos que amarravam Lázaro. Isso implicava tocar em um morto, ato que trazia “impureza”, conforme a lei judaica. Ao tocarem em Lázaro não levaria a tal impureza, pois este já não estava morto, mas VIVO. 

O medo em enfrentar a morte pode ser pelo que não se sabe como irá ser essa passagem de uma realidade para outra, mas também pode ser o desespero humano de não ter fechado algumas etapas da vida envolvendo família, amizades, realização profissional… . Essa narrativa nos ensina sobre o desígnio de Deus para o ser humano: a comunicação de sua própria vida, a vida eterna que transcende qualitativamente a vida biológica e, por isso, supera a morte física. A morte como final da vida física é o ponto máximo da debilidade humana. O medo dessa morte como fim definitivo torna o ser humano impotente para resistir à opressão, doando-se em amor. Somente aqueles que compreendem o valor da vida eterna que transcende a própria morte, podem tornar-se mártires da fé, tal como os cristãos que se entregavam ao martírio no tempo das perseguições e tantos outros que arriscam suas vidas biológicas em prol do Reino de Deus. Alguns e algumas, acabam realmente, perdendo sua vida física. Mas seu testemunho de martírio mostra que o fizeram porque descobriram o verdadeiro significado da vida eterna.

Ao concluirmos essa quadra da quaresma, é importante enfatizar o fato de que Deus nos prepara para vivermos mais uma vez a experiência da páscoa, atualizando-a em nossas vidas e experimentando o poder de sua ressurreição sobre a morte que nos rodeia. Esse poder será incrível, tal como a visão do profeta Ezequiel: “E, enquanto profetizava, houve um barulho, um som de chocalho, e os ossos se juntaram, osso com osso. Olhei, e os ossos foram cobertos de tendões e de carne, e depois de pele, mas não havia espírito neles. -Ele me disse: “Profetize ao sopro. Profetize, filho do homem. Diga ao sopro: ‘O Eterno, o Senhor, diz: Venha dos quatro ventos. Venha, sopro. Sopre sobre estes corpos mortos. Sopre vida!’ Então, profetizei exatamente como ele me ordenou. O sopro entrou neles, e eles se tornaram vivos!  Eles se levantaram — um enorme exército.”. Sinais de vida, sinais de renovação, de esperança…

Profetizemos sobre essa humanidade desfigurada e  tiremos a pedra que impede nos de ver o poder de Deus agir no mundo. AMÉM. 

Reverendo Arthur Cavalcante+ (Homilia transmitida via YouTube para a Paróquia da Santíssima Trindade no 5º Domingo da Quaresma).

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *